segunda-feira, agosto 18, 2008

2º dia de comboio, terceira noite - km 3343 de 7610 – Moscovo – Pequim

Para um europeu, a passagem dos Montes Urais é sempre um momento mítico. E de facto, do ponto de vista da percepção do viajante do transmongoliano, nem um sinal exterior para nos situarmos nesse contexto geográfico. Não fosse o guia da Lonely Planet e em nenhum momento teriamos percebido que já estávamos na Ásia, segundo aprendemos na geografia e que são justamente os Urais que servem de referência física à histórica divisão dos continentes Europa e Ásia.
Asseguro-vos, no entanto, que apesar do percurso do transmongoliano passar muito próximo dos Urais, o que podemos percepcionar visualmente é apenas um ligeiro aumento da altitude, uma efectiva mudança da paisagem florestal e a certeza que a cartografia não mente. Nem a cartografia da alma, da alma europeia que chegando a este ponto deixa instalar-se a melancolia e obriga ao exercicio do contacto com o outro.
Aqui, o pôr do sol é vivido na excentricidade desta imensidão que é a Sibéria que parece nunca mais acabar apesar de a estarmos a percorrer há dois dias e três noites.


O transmongoliano é uma escola de partilha, uma reaprendizagem da gestão dos espaços público e privado, um meio excepcional através do qual conhecemos a nossa Terra.
Quanto mais fazemos o transmongoliano mais nos sentimos fascinados pelas vivências ímpares que nos proporciona, nomeadamente, este contacto privilegiado com o quotidiano de outros povos tão diferentes mas ao mesmo tempo tão iguais.
Desta vez, somos companhia de coreanos, franceses, alemães, ingleses e, claro, de russos. E o que fascina é justamente a possibilidade de lermos o mundo numa carruagem de nove cabines habitadas por quatro pessoas que podem ser de países tão distintos como a China, a Alemanha, Portugal ou Coreia.


O povo russo tem uma relação com o transsiberiano totalmente diferente de todos os outros povos. Uma relação também ela mítica, mas ao mesmo tempo muito pragmática. Em primeiro lugar porque o transsiberiano é uma linha férrea absolutamente vital para a sobrevivência dos povos da Sibéria, de uma Sibéria cada vez mais despovoada e mais desprotegida, onde também aqui, e tal como no resto o país o Estado deixou abruptamente de cuidar de um povo que até há 10 anos atrás dependia dele até para pensar.
O povo russo apanha o transsiberiano para se mobilizar no seu território na horizontal já que os rios russos movem-se de norte para sul e nunca de este para oeste ou vice-versa. Há milhares de famílias que dependem exclusivamente do transsiberiano para viver: trabalhar, estabelecer relações afectivas e familiares, para negociar, (...).
O comboio pára por dia uma média de 2 a 6 vezes. Cada uma das paragens tem de 5 a 20 minutos nas plataformas das respectivas estações. E é aqui, nestas plataformas onde vamos distender o corpo, que constatamos a importância vital deste meio de transporte para as populações desta zona do mundo.
O transsiberiano transporta em média 400 passageiros. O Rossia, como é conhecido este comboio, justamente porque é o único meio de transporte que atravessa toda a Rússia, sai uma vez por dia de Moscovo e uma vez de Vladivostok. Portanto, não há dia nenhum que não viajem nesta linha de comboio uma média de 800 pessoas.
© Ana Paula Lemos
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