“A QUEDA” E O LUGAR DA HISTÓRIA EUROPEIA
Os europeus demoraram séculos até poderem apresentar a liberdade e a tolerância como dois dos valores fundamentais da alma europeia. Na verdade, esse é um dos “milagres” garantidos pelo projecto comunitário. Há pouco mais de 60 anos, a Europa sentia na pele o mais brutal conflito da história de toda a humanidade. Muitos dos que presenciaram directamente esse conflito estão ainda vivos e jamais se esquecerão da sua magnitude, da destruição à sua volta e das provações a que foram submetidos.
Já para os mais novos, a 2ª Guerra Mundial não passa de mais um capítulo dos livros de História. E com as actuais políticas educativas, que privilegiam o ensinar muito e não o ensinar bem, não há tempo para que as questões sejam pensadas e analisadas segundo diferentes perspectivas. É interessante ver como aquele período histórico é apresentado aos alunos. Em linhas gerais, retrata-se a forma como Hitler e o seu partido nazi subiram ao poder, os planos que tinham para dominar toda a Europa e o início da guerra. A partir daqui parte-se para um descrição detalhada dos dados mais horrendos do Holocausto: a política de extermínio dos judeus, os campos de concentração, os trabalhos forçados, a utilização de câmaras de gás.
Depois de tomarem contacto com imagens e factos do período nazi, poucos jovens conseguem deixar de olhar para a figura de Hitler como um monstro. É por isso que considero que “A Queda” é daqueles filmes que deveria ser obrigatório mostrar em todas as escolas. Além de ser a prova de que o cinema europeu nada deixa a desejar ao americano, é um filme totalmente diferente do que poderíamos esperar. Nele retrata-se, naturalmente, um Hitler descontrolado e brutal, que jamais aceita que o exército vermelho vai conseguir conquistar Berlim, que se regozija por ter livrado o seu país do sangue judeu e que despreza claramente a vida dos alemães que tanto dizia admirar. Até aqui, nada de novo.
Mas o que torna este filme tão curioso é o facto de, pela primeira vez, ter sido destacado o outro lado de Hitler. Em “A Queda”, o Fuhrer (magnifica interpretação de Bruno Ganz) também gosta de música erudita e desculpa de forma compreensiva os erros da sua secretária, pois ele próprio também se engana. Ou seja, o que o filme nos mostra é que tudo pode acontecer de novo: aqueles actos sangrentos e brutais, que criaram uma profunda ferida na Europa, foram afinal feitos por alguém que, em certos momentos, também tinha algumas atitudes humanas. E bastou que as ideias de uma mente tortuosa com a de Hitler não fossem levadas a sério, desde o início, para que acontecesse o período mais negro da história europeia.
E esta é uma mensagem profundamente útil para o futuro. Os europeus têm de lutar diariamente pela preservação da liberdade e da tolerância se querem continuar a construir este projecto que lhes garante a paz há 50 anos. Arrumar Hitler na gaveta, pensando que a história não se irá repetir, pode ser um erro com resultados muito perigosos. De facto, não é preciso uma excepcionalidade inumana para que a Europa volte a ser palco das atrocidades mais inimagináveis. A questão não se resume só ao lado sombrio da natureza humana quando alcança o poder absoluto. É que os instintos totalitários estão profundamente entranhados na mentalidade e filosofia europeias, como, por exemplo, em Rousseau, Maquiavel ou Nietzsche. Porque a linha que separa o mal absoluto e o humanismo é muito mais fina do que imaginamos.
Sérgio Hipólito
(mestrando Estudos Europeus)
Estagiário da OIT em Lisboa