Se o deputado europeu Pacheco Pereira, que se diz agnóstico e, portanto, insuspeito de parcialidade neste campo, reconheceu que “é errado identificar a Europa com o modelo da revolução francesa, enquanto a unidade política e cultural da Europa é muito mais um resultado do cristianismo do que qualquer outra coisa”, não há dúvida de que a herança e as raízes cristãs da Europa estão enformadas pela Bíblia judeo-cristã [1]. Até se poderia acrescentar a evidência de que, sem a tradição bíblica, a cultura ocidental seria incompreensível e, em conjunto, estaria mais atrasada. “A herança cristã... diz respeito à nossa cultura em geral, a qual se tornou aquilo que é, também e sobretudo porque foi intimamente «trabalhada» e forjada pela mensagem cristã ou, mais genericamente, pela revelação bíblica (Antigo e Novo Testamento)... Grande parte das conquistas da razão moderna – teóricas e práticas, até à organização racional da sociedade, ao liberalismo e à democracia – estão radicadas na tradição hebraico-cristã, e não são pensáveis fora dela” [2]. “Não existe praticamente nó na textura da existência ocidental, da consciência e da consciência de si próprios dos homens e das mulheres ocidentais (e, consequentemente, americanos) que não tenha sido tocado pela herança do hebreu. Isto aplica-se tanto ao positivista, ao teísta e ao agnóstico quanto ao crente. O desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um Livro supremo, a noção do direito como algo inextricável em relação aos mandamentos morais, o nosso próprio sentido de História enquanto tempo revestido de propósito, têm origem na singularidade enigmática e na dispersão de Israel… A paixão de Marx pela justiça social e o historicismo messiânico estão em acordo directo com os de Amós ou Jeremias. A estranha pressuposição de Freud de um crime original – o assassínio do pai – espelha eloquentemente o cenário da queda de Adão” [3].
“A Bíblia…, o mais grandioso livro da humanidade, é o livro por excelência em que toda a nossa civilização cristã aprendeu a ler, em que todos nós, povos do Ocidente, haurimos as nossas ideias morais, artísticas e literárias, e donde brotou, como um rio poderoso de águas fecundantes, um inesgotável tesouro de santidade e de génio, desde as catedrais românicas até a O Messias de Haendel, passando pela Capela Sistina” [4]. A Bíblia teve uma função generativa relativamente à cultura ocidental, tornando-se para ela uma espécie de léxico iconográfico e modelo ideológico. Também contribuiu para formar a consciência histórica e crítica do nosso mundo. Quem quer que explore as artes, a civilização e a história dos dois milénios do Ocidente a qualquer nível de profundidade reconhece a Bíblia como chave para as compreender e interpretar [5].
Ninguém tem dúvida de que a Bíblia, na medida em que configurou a visão cristã do mundo, é o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos na criatividade humana e no imaginário ocidentais [6]. De modo especial nas artes e na literatura, ela inspirou particularmente a expressão da beleza, da nobreza, da grandeza da vida humana e das maravilhas da natureza: foi aproveitada para exprimir os sentimentos mais elevados do ser humano e para este se transcender. A Bíblia é um mundo sem fronteiras. Milhares de gerações de pessoas ao longo de séculos a leram, meditaram, veneraram, estudaram, aprenderam de cor, repetiram vezes infinitas. Deu voz à sua oração e poesia ao seu canto, no esplendor e na dor. É um poema que nunca se desgasta.
Procurar delinear esta presença na multiplicidade das suas formas, correctas ou desfiguradas, é um empreendimento ciclópico, para não dizer impossível na prática, visto que seria infinita qualquer tentativa de catalogação das mais diversas influências [7]. Ele suporia apanhar o traçado da Tradição teológica, espiritual e artística, gerada pela Escritura. Suporia a pesquisa sobre a chamada «história dos efeitos» – a Wirkungsgeschichte. Mostramos aqui só os pontos essenciais em que incidiu o extraordinário influxo do Livro dos livros, o livro mais elevado e o mais popular. Movendo-nos sempre numa trajectória meramente exemplificativa, indicamos só alguns modelos que representem de modo emblemático este imenso influxo (fora do reduzido âmbito deste trabalho estudamos a interacção da Bíblia com o teatro, com a literatura, com a mentalidade, com a moral ocidentais).
[1] Cf. J.P. HAMMEL – M. LADRIÈRE, La culture occidentale dans ses racines religieuses (Hatier; Paris 1991); Ch. LABRE, Dictionnaire biblique, culturel et littéraire (Armand Collin; Paris 2002); D. JOSÉ POLICARPO, “Afinal Deus é beleza”, A transmissão do património cultural e religioso. Semana de Estudos Teológicos da Faculdade de Teologia, UCP, Lisboa 10-13.2.2003 (Ensaios 10; Paulinas; Prior Velho 2005) 120-121.
[2] G. VATTIMO, Acreditar em acreditar [o título original Credere di credere corresponderia mais a Acreditar que acredito ou Acredito acreditar] (Religiões; Relógio d’Água; Lisboa 1998) 23.64.
[3] G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 40.
[4] Paul CLAUDEL, citado em D. FOUILLOUX et alii (eds.), Dictionnaire culturel de la Bible (Cerf - Nathan; Paris 2006) 263.
[5] Cf. D. DYAS – E. HUGHES, The Bible in Western Culture. The Students Guide (Routledge; London – New York 2005) 1-9. “A «ideia de Europa» está entretecida das doutrinas e da história do cristianismo ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos. A literacia europeia desenvolveu-se a partir do ensino cristão” –afirma convictamente G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 50.
[6] É também essa a opinião de F. LOURENÇO, na Introdução à sua tradução da Odisseia de Homero (Livros Cotovia; Lisboa 2003), indicando a própria Odisseia homérica como a mais influente a seguir à Bíblia (p. 11).
[7] Cf. P. STEFANI, La radice bíblica. La Bibbia e i suoi influssi sulla cultura occidentale (Bruno Mondadori; Milano 2003).
“A Bíblia…, o mais grandioso livro da humanidade, é o livro por excelência em que toda a nossa civilização cristã aprendeu a ler, em que todos nós, povos do Ocidente, haurimos as nossas ideias morais, artísticas e literárias, e donde brotou, como um rio poderoso de águas fecundantes, um inesgotável tesouro de santidade e de génio, desde as catedrais românicas até a O Messias de Haendel, passando pela Capela Sistina” [4]. A Bíblia teve uma função generativa relativamente à cultura ocidental, tornando-se para ela uma espécie de léxico iconográfico e modelo ideológico. Também contribuiu para formar a consciência histórica e crítica do nosso mundo. Quem quer que explore as artes, a civilização e a história dos dois milénios do Ocidente a qualquer nível de profundidade reconhece a Bíblia como chave para as compreender e interpretar [5].
Ninguém tem dúvida de que a Bíblia, na medida em que configurou a visão cristã do mundo, é o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos na criatividade humana e no imaginário ocidentais [6]. De modo especial nas artes e na literatura, ela inspirou particularmente a expressão da beleza, da nobreza, da grandeza da vida humana e das maravilhas da natureza: foi aproveitada para exprimir os sentimentos mais elevados do ser humano e para este se transcender. A Bíblia é um mundo sem fronteiras. Milhares de gerações de pessoas ao longo de séculos a leram, meditaram, veneraram, estudaram, aprenderam de cor, repetiram vezes infinitas. Deu voz à sua oração e poesia ao seu canto, no esplendor e na dor. É um poema que nunca se desgasta.
Procurar delinear esta presença na multiplicidade das suas formas, correctas ou desfiguradas, é um empreendimento ciclópico, para não dizer impossível na prática, visto que seria infinita qualquer tentativa de catalogação das mais diversas influências [7]. Ele suporia apanhar o traçado da Tradição teológica, espiritual e artística, gerada pela Escritura. Suporia a pesquisa sobre a chamada «história dos efeitos» – a Wirkungsgeschichte. Mostramos aqui só os pontos essenciais em que incidiu o extraordinário influxo do Livro dos livros, o livro mais elevado e o mais popular. Movendo-nos sempre numa trajectória meramente exemplificativa, indicamos só alguns modelos que representem de modo emblemático este imenso influxo (fora do reduzido âmbito deste trabalho estudamos a interacção da Bíblia com o teatro, com a literatura, com a mentalidade, com a moral ocidentais).
[1] Cf. J.P. HAMMEL – M. LADRIÈRE, La culture occidentale dans ses racines religieuses (Hatier; Paris 1991); Ch. LABRE, Dictionnaire biblique, culturel et littéraire (Armand Collin; Paris 2002); D. JOSÉ POLICARPO, “Afinal Deus é beleza”, A transmissão do património cultural e religioso. Semana de Estudos Teológicos da Faculdade de Teologia, UCP, Lisboa 10-13.2.2003 (Ensaios 10; Paulinas; Prior Velho 2005) 120-121.
[2] G. VATTIMO, Acreditar em acreditar [o título original Credere di credere corresponderia mais a Acreditar que acredito ou Acredito acreditar] (Religiões; Relógio d’Água; Lisboa 1998) 23.64.
[3] G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 40.
[4] Paul CLAUDEL, citado em D. FOUILLOUX et alii (eds.), Dictionnaire culturel de la Bible (Cerf - Nathan; Paris 2006) 263.
[5] Cf. D. DYAS – E. HUGHES, The Bible in Western Culture. The Students Guide (Routledge; London – New York 2005) 1-9. “A «ideia de Europa» está entretecida das doutrinas e da história do cristianismo ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos. A literacia europeia desenvolveu-se a partir do ensino cristão” –afirma convictamente G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 50.
[6] É também essa a opinião de F. LOURENÇO, na Introdução à sua tradução da Odisseia de Homero (Livros Cotovia; Lisboa 2003), indicando a própria Odisseia homérica como a mais influente a seguir à Bíblia (p. 11).
[7] Cf. P. STEFANI, La radice bíblica. La Bibbia e i suoi influssi sulla cultura occidentale (Bruno Mondadori; Milano 2003).