quarta-feira, julho 02, 2008

I Parte do Texto A Bíblia na cultura europeia de Armindo Vaz

A Bíblia na cultura europeia



Armindo dos Santos Vaz


A partir de um artigo com o título “A Bíblia, o livro que mudou o mundo ocidental”, publicado em 10 livros que mudaram o mundo (organização de A.I. SANTOS – A.P. JARDIM, da Câmara de Oeiras) (Quasi; Vila Nova de Famalicão 2005) 61-105, saiu agora este trabalho, substancialmente aumentado, que, prolongado na descrição da influência da Bíblia na literatura europeia, está em vias de publicação.



Introdução

Escrita numa região que fazia a junção do mundo do Oriente com o do Ocidente, a Bíblia estendeu a sua influência de forma determinante para onde se estendeu o cristianismo: o Ocidente.
Para se difundir e atravessar os séculos, ela precisou de pessoal e de material. Precisou e precisa sobretudo de um transporte pessoal: os milhões de leitores que nela beberam, a família, o grupo de reflexão, o convento, a abadia e o mosteiro, a nação, a Igreja, a catequese, a pregação… Mas também precisou e continua a precisar de um meio de transporte material que lhe dê boleia para o futuro: usou manuscritos, o rolo, o papiro, o pergaminho, o códice, o palimpsesto, os fólios monumentais e a miniatura em formato de cabeça de alfinete, os leccionários, o papel, o livro impresso, o pano e a madeira, a pedra e as imagens, o braile e a linguagem de sinais para surdos, e agora o suporte informático, electrónico, em discos compactos e outros.
Mas o transporte da Bíblia do passado para o presente era lento. O século XII ainda desconhecia a Bíblia num único grande volume. Razões técnicas e práticas impediam que isso acontecesse. Os manuscritos eram volumosos e pesados. Uma Bíblia completa teria sido intransportável e pouco manejável. As letras eram demasiado grandes para que o texto pudesse caber num só volume. No séc. XIII o tamanho das letras manuscritas foi reduzido a dimensões menores. Este factor e o uso intenso das abreviaturas contribuíram para a compressão da caligrafia. Mesmo assim, uma Bíblia do séc. XIII raramente pesava menos de cinco quilos. Seriam precisas outras técnicas para tornar uma Bíblia verdadeiramente «portátil»
[1]. Uma dessas técnicas foi a imprensa.
Precisamente no uso da imprensa e de materiais para alargamento da sua influência, a Bíblia guarda a honra de ter marcado uma viragem importante da civilização: é a mais antiga, a mais célebre e a primeira obra de tomo a ser impressa pelo processo de tipos móveis. Foi a Biblia latina de Gutenberg. Impressa em Mogúncia, Mainz, provavelmente entre o ano 1454/1455 e o 24 de Agosto de 1456, é chamada “Bíblia Mazarina” ou “Bíblia das 42 linhas” por coluna, a duas colunas por página, com caracteres góticos, admiravelmente gravados numa impressão perfeitíssima. Foi feita para se parecer a um manuscrito gótico alemão. Foram impressas umas 180 cópias originais, todas iluminadas à mão, das quais sobrevivem uns 41 exemplares, 12 em pergaminho
[2]. A nossa Biblioteca Nacional em Lisboa possui um exemplar em papel: de facto, algumas cópias foram impressas em pergaminho e outras em papel [3].
Portanto, até ao séc. XV o texto bíblico foi manuscrito, graças a copistas. Da necessidade de publicação e preservação dos conteúdos depressa os respectivos artefactos se tornaram também objecto de expressão artística. Do desenho da caligrafia às iluminuras que acompanhavam os textos, passando pela qualidade dos materiais usados, a Bíblia figurava então entre as obras artísticas de maior vulto. A invenção da imprensa não só veio diminuir o custo de produção como permitiu uma disseminação sem precedentes dos textos bíblicos. Se a imprensa permitiu uma produção e divulgação que tornou a Bíblia no livro mais vendido em todo o mundo, este processo despiu-a da arte que lhe conferia a cópia manuscrita
[4].
A Bíblia ainda detém mais dois importantes records da história universal do livro. Um dos exemplares desta primeira impressão da Bíblia foi vendido pelo valor mais alto alguma vez atingido por um livro: 250.000 contos em 1978. Além disso, é de longe o livro mais traduzido e divulgado, já desde a antiguidade anterior ao Novo Testamento
[5]. O processo de tradução e retradução tem sido contínuo ao longo de mais de dois milénios. Só as Sociedades Bíblicas distribuem anualmente em todo o mundo cerca de 500 milhões de Bíblias [6]. A Bíblia, na totalidade ou em partes substanciais (pelo menos, um livro completo), está traduzida para mais de 2426 línguas diferentes [7]. Em português há mais de vinte versões, oriundas de Portugal e do Brasil. É o livro mais reproduzido, mais lido e referenciado de todos os tempos. Também se pode dizer que é o acto de linguagem mais largamente publicado e difundido à face da Terra.
Esses dados históricos determinaram ainda mais a sua influência e a sua difusão.
Particularmente o Novo Testamento teve na cultura do Ocidente uma influência muito superior à de qualquer outro livro da antiguidade. Um testemunho dessa influência pode ver-se no facto de o seu texto no original grego ter chegado até nós numa quantidade de cópias incomparavelmente maior do que a de qualquer outra obra do mundo clássico. Ao todo, conhecem-se e conservam-se 5.488 antigos manuscritos gregos com partes, com alguns livros ou com a totalidade do Novo Testamento: é de longe a base textual mais alargada para qualquer corpus de escrita antiga na língua original
[8]. Em termos de conservação, o Novo Testamento supera sem comparação muitos outros livros clássicos antigos, que chegaram até nós fragmentários e em raríssimos códices, normalmente posteriores, em muitos séculos, ao texto original. Exceptuando o caso de autores muito populares como Homero e Virgílio, é raro que obras da antiguidade contem mais de meia dúzia de manuscritos anteriores ao fim da Idade Média. Salvo fragmentos, não há manuscritos de clássicos gregos anteriores ao séc. IX e muito poucos anteriores ao séc. XII [9]. Aos 5.488 manuscritos do Novo Testamento na língua original é preciso acrescentar uns 10.000 manuscritos das diferentes versões antigas, bem como milhares de citações contidas nos escritos dos Padres da Igreja [10]. Esta boa conservação do texto explica a sua influência na sociedade e é resultado dela.
A presença decisiva da Bíblia nos países do Ocidente sente-se em múltiplos aspectos da vida, da cultura, da política, das ciências, das artes, da literatura e da linguagem, da mentalidade, da religião, das leis, da moral e da história
[11]. Valores fundamentais do direito ocidental são de origem bíblica. A Bíblia dá, abundantemente, forma à nossa identidade histórica, cultural, religiosa e social [12]. “A identidade [europeia], independentemente de qualquer estruturação jurídica de uma unidade política, está nos Evangelhos; para além do pluralismo antropológico e histórico, encontra-se na comunhão da fé. De resto, o profético Canto II [de Os Lusíadas de Camões], quando anuncia que os lusíadas «novos mundos ao mundo vão mostrando», de modo que «por eles, de tudo em fim senhores, / serão dadas na terra leis melhores» (Canto II, xlvi), é de um globalismo cristocêntrico que trata” [13].
[1] Cf. I. ILLICH, “Du lisible au visible: La naissance du texte. Un commentaire du Didascalicon de Hugues de Saint.Victor”: Œuvres complètes, II (Fayard; Paris 2005) 686-689.
[2] Cf. Ch. de HAMEL, The Book. A History of the Bible (Phaidon Press; London 2001) 190-215.
[3] Uma cópia em papel pesa aproximadamente 13.5 kg, enquanto que uma cópia em pergaminho pesa cerca de 22.5 kg. Cf. A.J. ANSELMO, “A invenção da imprensa”, Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 4 (Imprensa Nacional; Lisboa 1923) 11-12. A edição que está entre as preciosidades da biblioteca da Universidade de Coimbra é a Bíblia das 48 linhas, posterior, datada e inserindo o nome dos impressores (Fust e Schoeffer), num magnífico estado de conservação. Embora não tivesse saído da oficina do inventor da imprensa, a Bíblia de 1462 ou das 48 linhas não deixa de ser uma edição notabilíssima, um livro preciosíssimo e de extrema raridade, que também está na Academia das Ciências de Lisboa. Cf. outrossim R. PROENÇA, “Algumas notas sobre a Bíblia” Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 1 (Imprensa Nacional; Lisboa 1920) 90-91.
[4] Cf. S.M. MILLER – R.V. HUBER, The Bible: A History. The Making and Impact of the Bible (Lion Hudson; Oxford 2004) 124-131.
[5] De facto, já antes de ela estar acabada começava a longa aventura da sua tradução, para o grego: cf. P. CHUVIN, “La première aventure éditoriale: la Bible”, Initiation à l’Orient ancien. De Sumer à la Bible (Présenté par J. BOTTÉRO) (Points: Histoire 170; Seuil; Paris 1992) 334-339. Sobre a influência da famosa tradução grega do Antigo Testamento noutras línguas orientais e ocidentais, cf. Cf. M. HARL – G. DORIVAL – O. MUNNICH, La Bible grecque des Septante. Du judaïsme hellénistique au christianisme ancien (Initiations au christianisme ancien; Cerf - C.N.R.S.; Paris 1988) 330-334.
[6] Agradecemos estes dois dados à Sociedade Bíblica de Portugal.
[7] Completa, está traduzida em 429 línguas; o Novo Testamento, em 1144 (dados fornecidos pelo sítio da Internet, ZENIT, a 1.2.2008). O objectivo é, até 2025, tê-la traduzida em todas as restantes: 6.500 no total. Em 1999 as Sociedades Bíblicas por todo o mundo estavam a trabalhar em 685 projectos de tradução da Bíblia, dos quais em 468 casos se tratava de a traduzir a línguas que ainda não a possuíam traduzida: ver notícia em Le monde de la Bible 117 (1999) 87.
[8] Até a prestigiada revista Time (23.1.1995) se fez eco desta estrepitosa constatação.
[9] Cf. C.H. ROBERTS, “Books in the Graeco-Roman World and in the New Testament”, The Cambridge History of the Bible, 1 (eds. P.R. ACKROYD – C.F. EVANS) (Cambridge 1970) 48-66.
[10] Cf. A.P. DELL’ACQUA, “Storia e critica del testo del Nuovo Testamento”, Introduzione generale alla Bibbia (ed. R. FABRIS) (Logos: corso di studi biblici 1; Elle Di Ci; Torino 1994) 323.
[11] Cf. M. BOCIAN – U. KRAUT – I. LENZ (eds.), I personagi biblici. Dizionario di storia, letteratura, arte, musica (Bruno Mondadori; Milano 1997).
[12] Achamos de algum interesse apoiar a nossa visão da influência da Bíblia na cultura do Ocidente citando a opinião de consagrados conhecedores deste tema, mesmo ao preço de repetirmos algumas ideias. Desde já, deixamos a de G. STEINER, A Bíblia hebraica e a divisão entre judeus e cristãos (Antropos; Relógio D’Água; Lisboa 2006) 41: “Temos conhecimento das analogias do Génesis com outros mitos da criação do Médio Oriente, alguns dos quais podem muito bem ser mais antigos. Mas foi o primeiro livro da Bíblia hebraica que determinou, em grande medida, a formação religiosa, metafísica, moral e artístico-literária do Ocidente”.
[13] A. MOREIRA, “As Escrituras e a identidade europeia”, Theologica 38/1 (2003) 38. E continua o Prof. Adriano Moreira: “[No direito internacional], o actual objectivo de uma organização da ordem internacional marcada pela «paz pelo direito», radica na contribuição dos Projectistas da Paz, todos cristãos e europeus… Como afirmou Denis de Rougemont, na sua «Carta aberta aos Europeus»: «minha tese é simples. Consiste em recordar que a maior parte dos nossos valores e ideias, para nós Europeus, e a maior parte das nossas actividades correntes, sérias ou não, derivam da noção de homem introduzida pelo cristianismo. Não falo aqui do convertido, do homem cristão no sentido corrente, do membro da igreja, mais ou menos puro e mais ou menos moral. Falo, de uma maneira mais geral, do tipo de homem (crente ou não) que o cristianismo permitiu conceber e a que chamou pessoa»” (pp. 38-39).

©Armindo Vaz
Professor Universidada Católica
Padre Carmelita
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