Lembro-me da India. Por tudo e por nada lembro-me da India, da India eterna. Hoje, lembrei-me das mulheres que colhem o chá no Darjeeling. Dizem que as mulheres, nesta zona do mundo, são altamente produtivas no corte mágico da flor do chá. Não tive tempo de ouvir excelentes explicações, dizem, a este respeito. O que sei, e isso vi, graças aos deuses da India, é que naqueles ondulantes terrenos, as mulheres agacham-se tão profundamente sobre elas mesmas para cortar as folhas, que seguramente ouviriamos, se estivessemos perto, o gemido das entranhas daquele desconforto.
E há tantos mágicos desconfortos na India. Há ainda o desconforto das mulheres que todos os dias de inverno pedem aos deuses coragem para não incediarem as suas pobres mãos com o chamuscar permanente dos restos do carvão que buscam (encontram) à saída da boca do comboio a vapor no terminal da linha férrea de Darjelling.
O que leva estas mulheres a dar as mãos por pedaços tão infinitamente pequenos de carvão? Nesse dia não pude ainda perceber. Era justamente ali que morava um menino que de tão pequenino morreu submerso numa montanha de lixo.
Voltarei a lembrar-me da India.
Amanhã, claro, amanhã, de novo, lembrar-me-ei da India. Mas amanhã lembrar-me-ei da India e da Jesus, do Angelo e da Beatriz, da Antónia e da Inês, do Fernando, da Amaryllis, dos Zés, do Pedro e do Soares, da Ana e do Rui, da Paula e da Conceição, do Tiago, da Graça e do Carlos, do João, e da Celina, com a clareira de ter encontrado no meu céu, a oração de tantos deuses.
(c) Ana Paula Lemos