«Entre conhecedores, é um segredo de Polichinelo que, desde há mais de cem anos, uma grande parte da intelectualidade ocidental «asiatiza», como se costuma dizer. Poder-se-ia ver nisso uma brincadeira irónica do objecto do conhecimento com o seu sujeito. No mundo das inteligências, sucede que o descobridor se expõe a uma descoberta recíproca por parte daqueles que foram descobertos. Para o mundo burguês, entre os séculos XVII e XIX, o interesse pelo Oriente despertou sob o signo do colonialismo, que não tardou a acarretar um comércio intelectual à escala mundial. Foi a geração do período do romantismo que, pela primeira vez, ergueu as importações da Ásia a um nível teórico e as inseriu numa sinopse grandiosa das civilizações do mundo. Conversa universal sobre literatura universal, tal foi a imagem serena de um ecumenismo romântico, em que se fazia circular a lírica persa as traduções dos Upanishads como outras tantas provas da actividade autenticamente metafísicas da alma do mundo.
Mas a coisa não se ficou por um namorico filológico. Para o Oriente real, o facto de ter sido descoberto por um espírito diferente, veio a ser um encontro com o seu destino. O que começara como descoberta, depois prosseguira como conquista, missionação e instrução do Oriente pelo Ocidente já altamente mobilizado, logo arrastou consigo o antigo Oriente para a mobilização do Planeta. O Japão forneceu ao mundo o modelo de uma autoliquidação perfeita e praticou um seppuku em benefício da indústria e da história, que permanecerá para sempre assombroso. Provavelmente a antiga Ásia desaparecerá um dia da face da Terra, no âmbito de uma autocolonização histórica, e talvez só sobreviva nas bibliotecas da indologia, da sinologia, da nipologia, de inspiração ocidental, tal como a velha Europa apenas sobreviveu em seminários de filologia clássica e de estudos medievais...e filmes históricos».
in Mobilização Infinita, Peter Sloterdijk, pp 58 - Relógio D'Água.