Assistir a esta sessão especial foi duplamente um privilégio: por um lado, a oportunidade de assistir a mais um filme de elevada qualidade, ainda por cima uma produção nacional, um drama sobre o país que fomos e que, de alguma forma, ainda somos; por outro lado, o facto desta obra nos ser apresentada pelo próprio realizador, o que traz sempre a possibilidade de vislumbrar um pouco do sonho que o animou e das peripécias que fazem parte do “nascimento” da obra, o que é sempre melhor do que qualquer trabalho de crítica ou análise, por muito bom que seja.
Começámos por ver um pequeno documentário sobre Vergílio Ferreira (realizado também por Lauro António), e onde de uma forma muito poética contactamos com a realidade da sua escrita, e percebemos também um pouco melhor o carácter deste homem. Vergílio Ferreira nasceu nas cercanias da Serra da Estrela, entrou para o seminário aos 10 anos de idade (lá permaneceu durante cerca de 6 anos), e terminou depois o seu percurso liceal, entrando na Faculdade de Letras em Coimbra. Tornou-se professor mas era já desde o tempo da faculdade, escritor, ao princípio mais influenciado pela corrente neo-realista, depois mais pela existencialista. Profundamente marcado por esses anos da infância, o seu discurso é quase sempre um olhar sobre a solidão, o silêncio, e a neve e o clima agreste da Serra, metáforas do caminho difícil do Homem no Mundo, ilustram muitas vezes as suas obras.
E é junto à Serra que começa também o nosso filme. As paisagens imensas, o frio que quase transparece do écran, a música majestosa, tudo nos transporta ao estado de alma propício para compreendermos o que se passa no coração do pequeno António, pois é dele a história que se conta. Assim, mergulhamos na vida de António, enviado para o seminário, e retirado sem mais ao convívio da sua família e da vida na aldeia. O abandono que experimenta, a ausência de um acolhimento afectuoso dentro do seminário, os dias impessoais, o discurso assustador de “perdição da alma” e das “tentações demoníacas”, tudo nos é mostrado sem rodeios. Torna-se nosso também o sentir do protagonista, a lenta compreensão de que, na verdade, lhe está a ser roubada toda a sua liberdade, talvez o seu único bem, e sem dúvida o mais precioso. Ao mesmo tempo ficamos a conhecer os padres que no Seminário são os professores, os educadores, os conselheiros, as encarnações da lei e da ordem, e que obedecendo a uma estrutura de séculos, onde as questões não têm lugar, perpetuam o mundo que eles próprios viveram, muitas vezes sem qualquer vocação ou alegria. Temíveis, não inspiram nem o Amor nem a Paz de que fala o Evangelho, mas relembram constantemente o Regulamento, onde a mais pequena falha produz sempre a punição para a qual não há nem misericórdia nem perdão.
E no mundo real, para lá das paredes grossas do seminário, vive o Portugal rural da época (a acção passa-se por volta dos anos 40), onde os pobres lutam pelo bocado de pão do dia a dia, trabalhando no campo de Sol a Sol, ou na fábrica sujeitos a patrões pouco justos, e onde os ricos, aburguesados e decadentes, escolhem fechar os olhos e preferem apenas a manutenção do status quo e da segurança que daí lhes advém. Os senhores são sempre os senhores, e para os pobres não há esperança de mudança.
É este o Portugal em que nasceram os meus pais, o Portugal que projecta ainda algumas sombras sobre o nosso presente, hoje. Porque a mudança não é fácil, nem para um país, nem para um povo, nem para o indivíduo isolado. E no entanto é possível, ainda que fruto do desespero, como aprendemos com António nos minutos derradeiros da “Manhã Submersa”.
Começámos por ver um pequeno documentário sobre Vergílio Ferreira (realizado também por Lauro António), e onde de uma forma muito poética contactamos com a realidade da sua escrita, e percebemos também um pouco melhor o carácter deste homem. Vergílio Ferreira nasceu nas cercanias da Serra da Estrela, entrou para o seminário aos 10 anos de idade (lá permaneceu durante cerca de 6 anos), e terminou depois o seu percurso liceal, entrando na Faculdade de Letras em Coimbra. Tornou-se professor mas era já desde o tempo da faculdade, escritor, ao princípio mais influenciado pela corrente neo-realista, depois mais pela existencialista. Profundamente marcado por esses anos da infância, o seu discurso é quase sempre um olhar sobre a solidão, o silêncio, e a neve e o clima agreste da Serra, metáforas do caminho difícil do Homem no Mundo, ilustram muitas vezes as suas obras.
E é junto à Serra que começa também o nosso filme. As paisagens imensas, o frio que quase transparece do écran, a música majestosa, tudo nos transporta ao estado de alma propício para compreendermos o que se passa no coração do pequeno António, pois é dele a história que se conta. Assim, mergulhamos na vida de António, enviado para o seminário, e retirado sem mais ao convívio da sua família e da vida na aldeia. O abandono que experimenta, a ausência de um acolhimento afectuoso dentro do seminário, os dias impessoais, o discurso assustador de “perdição da alma” e das “tentações demoníacas”, tudo nos é mostrado sem rodeios. Torna-se nosso também o sentir do protagonista, a lenta compreensão de que, na verdade, lhe está a ser roubada toda a sua liberdade, talvez o seu único bem, e sem dúvida o mais precioso. Ao mesmo tempo ficamos a conhecer os padres que no Seminário são os professores, os educadores, os conselheiros, as encarnações da lei e da ordem, e que obedecendo a uma estrutura de séculos, onde as questões não têm lugar, perpetuam o mundo que eles próprios viveram, muitas vezes sem qualquer vocação ou alegria. Temíveis, não inspiram nem o Amor nem a Paz de que fala o Evangelho, mas relembram constantemente o Regulamento, onde a mais pequena falha produz sempre a punição para a qual não há nem misericórdia nem perdão.
E no mundo real, para lá das paredes grossas do seminário, vive o Portugal rural da época (a acção passa-se por volta dos anos 40), onde os pobres lutam pelo bocado de pão do dia a dia, trabalhando no campo de Sol a Sol, ou na fábrica sujeitos a patrões pouco justos, e onde os ricos, aburguesados e decadentes, escolhem fechar os olhos e preferem apenas a manutenção do status quo e da segurança que daí lhes advém. Os senhores são sempre os senhores, e para os pobres não há esperança de mudança.
É este o Portugal em que nasceram os meus pais, o Portugal que projecta ainda algumas sombras sobre o nosso presente, hoje. Porque a mudança não é fácil, nem para um país, nem para um povo, nem para o indivíduo isolado. E no entanto é possível, ainda que fruto do desespero, como aprendemos com António nos minutos derradeiros da “Manhã Submersa”.
©Maria Alexandra Campos