A TURQUIA E O VÉU ISLÂMICO
Pouco a pouco, a Turquia vai retirando argumentos aos que rejeitam a sua adesão à União Europeia. Finalmente, a lei de 1989 que proíbe o uso de símbolos religiosos em qualquer edifício público vai ser revista. Devido a esta lei, várias mulheres foram afastadas do acesso ao ensino público pelo facto de utilizaram véu. Mas após um aceso debate político, que se estendeu aos vários quadrantes da sociedade turca, o Parlamento aprovou uma revisão constitucional para alterar aquela situação, o que constitui mais um firme passo rumo à modernização do sistema democrático turco.
A Turquia de hoje ainda tem muitas marcas do regime fundado por Ataturk em 1923. Embora, pela primeira vez, tenha sido instalada uma democracia formal, Ataturk governou de forma autoritária, contando com uma forte base de apoio no exército. Uma das maiores preocupações do fundador da República da Turquia consistia em ocidentalizar o país a todo o custo impondo, muitas vezes através da força, a secularização e alteração das tradições sociais. Foi com Ataturk que se iniciaram as tentativas de proibição do uso de véu, ao mesmo tempo que a utilização de vestes ocidentais era fortemente promovida.
O legado de Ataturk permaneceu no exército turco, que ainda hoje tem um poder muito grande na evolução política do regime, assegurando a defesa intransigente do nacionalismo e do secularismo. Por exemplo, em 1997, o exército moveu todas as suas influências (não apenas diplomáticas) e acabou por conseguir a resignação do primeiro-ministro de então, por considerar as suas posições demasiado pró-islâmicas.
A revisão da lei que proíbe o uso de véu em locais públicos constitui uma das mais antigas promessas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), liderado por Recep Erdogan, que foi reeleito com maioria absoluta em 2007. Como seria de esperar, o projecto provocou um forte movimento de resistência nos meios laicos turcos, que afirmam que tal medida corrói os princípios laicos da Constituição da Turquia. De facto, Erdogan, um conservador islâmico, tem afrontado por várias vezes o secularismo autoritário dos militares. Desde que subiu ao poder em 2003, tem demonstrado o seu pragmatismo ao desejar a adesão à UE, sem nunca abdicar da especificidade da cultura turca, nomeadamente o seu cariz islâmico.
Mas analisar a questão por este prisma é não entender o que está em jogo. Sejamos claros: a nova lei de Erdogan veio pôr fim a uma discriminação absolutamente inaceitável. Ao longo destes anos, várias estudantes foram proibidas de frequentar a universidade por utilizarem símbolos islâmicos. Não se trata de uma afronta ao secularismo do Estado através da imposição de valores religiosos. Porque defender um Estado laico é muito mais do que querer separar o Estado e a religião: é, sobretudo, não impedir a utilização dos símbolos de fé de qualquer religião, desde que assumidos em total liberdade. A maioria das mulheres turcas usa véu, pelo que é mais do que justificado acabar com uma discriminação totalmente ultrapassada.
Mas na verdade, está em causa muito mais do que a simples utilização do véu. O fim da proibição constitui, de facto, um passo para a normalização da vida pública na Turquia, um país que se encontra entre dois continentes, entre dois mundos, mas cuja integração constitui, como já defendi, um desafio estratégico para a UE. É por isso que a União não pode ser neutra em relação à nova revisão constitucional. Porque o “nim” que tem sido dado aos pedidos de adesão da Turquia é, precisamente, uma das causas que sustenta o crescimento do radicalismo e do sectarismo no seio da democracia turca, e que afasta este país da órbita europeia. E o futuro da Europa passa inquestionavelmente pela Turquia.
Sérgio Hipólito
Pouco a pouco, a Turquia vai retirando argumentos aos que rejeitam a sua adesão à União Europeia. Finalmente, a lei de 1989 que proíbe o uso de símbolos religiosos em qualquer edifício público vai ser revista. Devido a esta lei, várias mulheres foram afastadas do acesso ao ensino público pelo facto de utilizaram véu. Mas após um aceso debate político, que se estendeu aos vários quadrantes da sociedade turca, o Parlamento aprovou uma revisão constitucional para alterar aquela situação, o que constitui mais um firme passo rumo à modernização do sistema democrático turco.
A Turquia de hoje ainda tem muitas marcas do regime fundado por Ataturk em 1923. Embora, pela primeira vez, tenha sido instalada uma democracia formal, Ataturk governou de forma autoritária, contando com uma forte base de apoio no exército. Uma das maiores preocupações do fundador da República da Turquia consistia em ocidentalizar o país a todo o custo impondo, muitas vezes através da força, a secularização e alteração das tradições sociais. Foi com Ataturk que se iniciaram as tentativas de proibição do uso de véu, ao mesmo tempo que a utilização de vestes ocidentais era fortemente promovida.
O legado de Ataturk permaneceu no exército turco, que ainda hoje tem um poder muito grande na evolução política do regime, assegurando a defesa intransigente do nacionalismo e do secularismo. Por exemplo, em 1997, o exército moveu todas as suas influências (não apenas diplomáticas) e acabou por conseguir a resignação do primeiro-ministro de então, por considerar as suas posições demasiado pró-islâmicas.
A revisão da lei que proíbe o uso de véu em locais públicos constitui uma das mais antigas promessas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), liderado por Recep Erdogan, que foi reeleito com maioria absoluta em 2007. Como seria de esperar, o projecto provocou um forte movimento de resistência nos meios laicos turcos, que afirmam que tal medida corrói os princípios laicos da Constituição da Turquia. De facto, Erdogan, um conservador islâmico, tem afrontado por várias vezes o secularismo autoritário dos militares. Desde que subiu ao poder em 2003, tem demonstrado o seu pragmatismo ao desejar a adesão à UE, sem nunca abdicar da especificidade da cultura turca, nomeadamente o seu cariz islâmico.
Mas analisar a questão por este prisma é não entender o que está em jogo. Sejamos claros: a nova lei de Erdogan veio pôr fim a uma discriminação absolutamente inaceitável. Ao longo destes anos, várias estudantes foram proibidas de frequentar a universidade por utilizarem símbolos islâmicos. Não se trata de uma afronta ao secularismo do Estado através da imposição de valores religiosos. Porque defender um Estado laico é muito mais do que querer separar o Estado e a religião: é, sobretudo, não impedir a utilização dos símbolos de fé de qualquer religião, desde que assumidos em total liberdade. A maioria das mulheres turcas usa véu, pelo que é mais do que justificado acabar com uma discriminação totalmente ultrapassada.
Mas na verdade, está em causa muito mais do que a simples utilização do véu. O fim da proibição constitui, de facto, um passo para a normalização da vida pública na Turquia, um país que se encontra entre dois continentes, entre dois mundos, mas cuja integração constitui, como já defendi, um desafio estratégico para a UE. É por isso que a União não pode ser neutra em relação à nova revisão constitucional. Porque o “nim” que tem sido dado aos pedidos de adesão da Turquia é, precisamente, uma das causas que sustenta o crescimento do radicalismo e do sectarismo no seio da democracia turca, e que afasta este país da órbita europeia. E o futuro da Europa passa inquestionavelmente pela Turquia.
Sérgio Hipólito
(mestrando Estudos Europeus)
11-02-2007
11-02-2007