domingo, janeiro 22, 2006

Comunicação Profº Jose Pedro Serra - lançamento Europa Viva

ASSOCIAÇÃO “EUROPA VIVA”

Exmo Senhor Representante da Comissão Europeia em Portugal,
Dr. Manuel Romano
Exma Senhora Dr.ª Ana Paula Magalhães Lemos
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Invocado não raras vezes em vão, obscurecido por um uso precipitado e desviado que só uma antiga e rica tradição pode suportar, ainda assim talvez nunca como agora o termo “cultura” se tenha revelado tão apropriado, tão adequado à nossa Europa, sobretudo se mantivermos presente a vibração e o fulgor que a sua etimologia arrasta. Adequado, não porque, como em outras épocas da nossa história, seja ele o esplendoroso reflexo da coragem com que respondemos ao renovado canto da Esfinge, da cuidadosa atenção que dispensamos à palavra, da convicção com que afirmamos a largueza do gesto e da obra, enfim, da profunda exigência do nosso amor pelas cousas nobres, sem o qual definha e fracassa o nosso destino. Adequado, sim, porque em conturbados tempos, em tempos de crise e por isso de dúvidas e de nevoeiros mas também de análises e distinções, é ainda a “cultura” que, rasgando um caminho, estabelecendo uma orientação, pode fazer florir as angústias e fertilizar as esperanças. Ora, retomando o clássico paralelismo entre a cultura dos campos – a agricultura – e a cultura do espírito, a ideia de “cultura” remete para a ideia do habitar, do habitar uma terra à qual generosamente se dedicam os cuidados amorosos que a transformam numa terra ubérrima. Este arrancamento do sentido etimológico revela um traço original da “cultura”, do modo como ela se constituiu, e ilumina a nossa condição e a natureza da nossa demanda. Revela a intencionalidade original da “cultura” ao indicar que, não sendo ela redutível a qualquer erudição, a qualquer habilidade mental, inconsequente jogo de aparências, é antes a expressão de um profundo desejo de metamorfose, de uma transfiguração que nos torne mais completos e autênticos. Ao fazê-lo, ao suscitar tal mudança, tal transfiguração, a “cultura” põe a descoberto uma dor primeira, uma original mutilação ontológica, de onde nasce o sopro que a anima. Crescendo nós como a árvore que cresce olhando os céus, a arquitectura da nossa alma desenha-se a partir de um desejo de unidade e plenitude, de uma saudade, saudade do que pela sentida ausência se torna presente e nos move. Esta sede de Absoluto, cumprida ou em espera parcialmente saciada, incumprida ou tragicamente em exílio afirmada, modela gloriosamente, no sofrimento e na alegria, a nossa condição e desenha o amplo horizonte do nosso pensar, do nosso sentir, do nosso agir. Na Grécia, onde começámos a ser quem somos, a este “trabalho da cultura”, que era entendido como educação, como formação, chamava-se paideia e de um modo ou de outro a ela se vincula a mais luminosa pedagogia.
Mas a cultura tem uma geografia e uma história. No começo, começo promissor de que jamais nos separámos, nessa aurora cor de açafrão, para embalar aqui versos de Homero, está a palavra heróica, está o destino de Aquiles, que, na aguçada consciência de uma morte próxima, vai por gestos esculpindo a honra e a fama, antes que o manto de Hades o derrube. A este herói outros sucederam e à apertada cidade sucedeu uma alargada polis, privilegiado lugar da política, lugar de encontro e de comunhão; e à lança e ao dardo sucedeu o poder da palavra, a eloquência, e à violência cruel da batalha guerreira sucedeu, civilizada sublimação, o debate político na assembleia. E a palavra tornou-se filo-sofia, indomável espanto, inquieta mão estendida à sabedoria. E no regaço do tempo, Verdade por muitos ainda anunciada, o Verbo fez-se carne, morreu e ressuscitou. E destes caminhos outros partiram, como faróis recortando a costa, e entre eles se cruzaram e o antigo rumor que os habita, mais ou menos perceptivelmente de acordo com a limpidez dos ouvidos que o escutam, percorre hoje as artérias de Lisboa como de Helsínquia, de Atenas como de Praga, primordial seiva do espírito de que somos herdeiros.
Depois do século XX, sabemos, e pagámos bem caro este saber, que não basta o trato e a convivência com as grandes tradições e os grandes textos para nos tornarmos melhores; sabemos como as cidades, de humanos lugares de encontro e comunhão, se podem tornar nas ferozes selvas de solidão e alheamento ou até nessas desventradas ruínas, como mostram as fotografias de Dresden e Varsóvia depois da guerra. A barbárie, confessemo-lo, não é apenas uma ameaça recente; do tratamento dado ao cadáver de Heitor, puxado pelos cavalos de Aquiles, a cabeça outrora bela batendo nas pedras da planície de Tróia, à brutalidade cega do 11 de Setembro e dos recentes ataques terroristas, a barbárie ora se insinua como uma serpente no fulgor do gesto, ora se abate com a violência brutal de uma crueldade impenitente. Tal facto, porém, não provoca a falência da cultura, não pode provocar a falência da cultura, nem pode ser pretexto para qualquer desistência; obriga-nos apenas a uma redobrada vigília. Sabemos e não esquecemos que por entre os versos de Vergílio e de Dante, ao lado de Shakespeare e de Racine, de Santo Agostinho ou de Kant, de Thomas Mann ou de Joyce, de Pessoa, a nossa europeia história carrega o fardo de pesadas sombras: fanatismo e intolerância, tirania e escravidão, arrogante ignorância, desfiguradora manipulação, acabrunhante banalidade. Sabemos, todavia, também, e não esquecemos, que desta mesma história se ergue dominante a voz de uma ideia de homem, de um homem que não está disposto a que o privem da sua memória milenar, que não consente lhe amordacem a sua ânsia de infinito e o seu desejo de imortalidade, que não permite o mutilem e o diminuam, fazendo-o menos do que é, que atraiçoem a autenticidade da sua interrogação, enfim, que não aliena a sua superior vocação de comungar com o outro, em gesto e em palavra livres, a aventura do que vai descobrindo e vivendo.
Tudo isto, porém, é apenas flactus uocis, sopro da voz, se, como um Sol que levamos connosco, não iluminar e aquecer os nossos dias. A Europa que vamos hoje construindo e perante a qual todos somos aprendizes, precisa desta memória e desta ideia. Sem elas, ainda que se adivinhe e entreveja riqueza e prosperidade, a alargada Europa cairá exangue e desalmada. A associação, cujo nascimento estamos hoje a celebrar, inspira-se na tradição cultural europeia e dela pretende ser guardiã e mensageira. Não é inútil salientar a importância e o alcance do projecto. A identidade da Europa funda-se no génio dos seus mais ilustres representantes e no generoso e talentoso labor daqueles que, mantendo-os presentes, evitam que as cinzas dos séculos os sepultem e o rumor das suas vozes se extinga sob o espesso manto da indiferença, dos caprichos da moda, de grosseiras satisfações, de paupérrimos imediatismos. Só por vós e por outros como vós se pode falar de uma “Europa viva”.
Permitam-me que a terminar os saúde com versos de Píndaro:

Efémeros. Que somos nós? Que não somos?
Sonho de uma sombra é o homem.

Sê-lo-á, na efemeridade do seu hálito, na grandeza da nunca alcançada distância do seu longo olhar. Nesta efemeridade, porém, na expressão do espírito ou na realização da obra algo nos aproxima dos deuses. Hoje, na nossa aventura colectiva, a terra da nossa cultura chama-se Europa. Por isso, por procurarem manter, renovadamente, este fogo aceso, o meu, julgo que o nosso, muito obrigado.

José Pedro Serra
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